quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Qual seria a maneira adequada de se ouvir (fazer) música?

Quietos? Atentos? Comportados? Conhecendo as obras previamente através de leituras e aná-lises? Articulando as intenções do compositor e as circunstâncias de criação de seu tempo, daquilo a que estamos acostumados chamar de estilos de época? Pasme... creio que não! Pois tudo isso, por mais instrutivo e culto que possa parecer se encontra sempre aquém ou além do que a própria música é e manifesta, bem como do que a arte em geral é e dá a conhecer. Pois, ser que se manifesta é o ato supremo de toda realização e não um simples pre-tender ser.

A música (e a arte) não é, nem se faz num ato exclusivo do conhecimento de um conjunto de códigos, regras e procedimentos com os quais se possa pre-tender garantir de antemão a efetuação de uma obra musical (artística). Se assim fosse, compor ou ouvir qualquer obra musical seria algo plenamente calculável, isto é, assegurado de antemão pela pura e simples aplicação das normas de procedimento. Seria algo tão corriqueiro quanto dirigir um carro ou andar de bicicleta, em que pese o fato de nós brasileiros, tão afeiçoados às mais diversas normas e códigos desde muito cedo na escola (afinal vivemos num país cujo lema é “ordem e progresso”), não respeitarmos enquanto sociedade os procedimentos mais básicos do trânsito. E, no entanto, compor e compreender música, ou qualquer arte, só não é algo “mais corriqueiro” em virtude de que somos por demais educados desde as perpectivas das normas e alienados desde os mais diversos procedimentos (leia-se: metodologia) de todo e qualquer fazer.

Ora, o conhecimento dos códigos e das normas de realização se relaciona sempre com o que já passou, com o que já foi feito. No entanto, “toda obra de arte é como uma palavra que é dita uma só vez, e não pode ser repetida.”[1] E por que não? Para responder é simples: imagine Da Vinci pintar de novo a Mona Lisa. Que tal Beethoven compor novamente a 5ª. Sinfonia? Absurdo, não? Sendo a obra a pura manifestação do anseio de realização de um porvir, isto é, do novo, ela não se curva, nem se atém às normas de procedimento. Quantos não são os exemplos que comprovam o empenho dos compositores em transcender toda e qualquer norma de procedimento para instaurar nas e pelas obras um novo aceno de realização, um novo aceno de ser? Não fosse isso, se seguíssemos sempre as normas de procedimentos e a metodologia consgrada deste ou daquele fazer, talvez ainda estivéssemos compondo canto gregoriano ou coisa que o valha! Nada contra o gregoriano, que pessoalmente adoro. Mas, quanta coisa ficaria de fora! Quanta possibilidade de realização e de ser!

Assim, na perspectiva de um horizonte entulhado e obscurecido por códigos, regras e procedimentos é que até mesmo as escolas de arte estão cheias de operacionalizações matemáticas de conteúdos que se somam e se multiplicam indefinida e indistintamente, impondo a mais intensa sanha de re-produção do conhecimento passado e acabado, muito pouco afeitas e abertas ao co-nhecimento (co-nascere) do futuro, isto é, da criação.

Portanto, a pergunta a respeito da maneira adequada de ouvir (fazer) música, sem querer me alongar na discussão desse “adequado”, digamos, é a maneira que a própria música nesta ou naquela obra por si mesma im-põe. Para tal, em primeiro lugar, precisamos ser todo ouvidos, algo cada vez mais difícil num tempo desmedidamente excessivo de informação e conhecimento. Pois a coisa é mais ou menos como diz Manoel de Barros:

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
Mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam.[2]

Desse modo, um possível passo para que possamos realmente nos permitir ouvir a música nas obras talvez seja abrir mão das mais diversas e ruidosas fontes de informação, códigos de conduta e de procedimentos e nos despojarmos um pouco do nosso conhecimento prévio do mundo, isto é, dos nossos pré-conceitos. Abaixo a re-produção! Criatividade já!



[1] Emmanuel Carneiro Leão, Aristóteles e as questões da arte. In: A arte em questão: as questões da arte. Manuel Antônio de Castro (org.). Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

[2] Manuel de Barros, Livro sobre o nada. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000, p. 53

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