terça-feira, 6 de novembro de 2007

Música e funcionalidade III

Bem, já se vai um longo período desde o úlltimo post. Gostaria de retomar um assunto que ficou meio que suspenso. No post do dia 30/09/2007, algumas questões foram colocadas sob a forma de perguntas. Apenas para recapitular, são elas: pode-se perguntar e com “razão”, apesar do fato de uma obra ser tão imbuída de funcionalidade e estar tão pre-determinada pelas perspectivas e expectativas da causalidade, a que se deve então sua sobrevivência para além de seu tempo? Por que a obra de arte, sendo “expressão” de uma época transcende sua circunscrição no tempo? O que permite que uma obra escape, por exemplo, a sua função sacro-religiosa e entre nas salas de concerto pelo mundo afora? O que faz, afinal, com que a obra perca ou até mesmo mude seu caráter de funcional?

Podemos dizer que a obra jamais sobreviveria à coisa alguma se ela fosse tão somente “expressão” de uma época. Certamente que a obra pode expressar isso ou aquilo, mas, convenhamos, isso de modo algum é exclusividade sua. A Paixão segundo São Mateus de Bach não sobreviveu pelo empenho de Mendelssohn, mesmo que reconheçamos como dele os merecidos créditos pelo resgate da obra de Bach.

Também não é a função sacra da Paixão que nela se possa reconhecer que garante sua sobrevivência a sua época, principalmente em face da situação deplorável da música sacra nas igrejas da atualidade, generalisticamente falando. É preciso reconhecer que além do mero interesse historiográfico de preservação de acervo documental, é a obra, antes de tudo, que se manifesta digna de resgate, é ela que instaura o seu próprio tempo e se institui co-partícipe da mesma temporalidade que a nossa, isto é, de nossa com-temporaneidade. A obra inaugura a cada vez o seu próprio tempo e por isso ela sobrevive, quando é realmente obra, a sua época.

Igreja de São Tomás (Thomaskirche),
em Leipzig, onde Bach trabalhou.

Aquele mundo epocal de Bach ruiu, não existe mais, nem volta mais, por mais que nos esforcemos em nossos empenhos hitoriográficos. Não se pode considerar sua música como o restou de sua época sob pena de a tratarmos como mero escombro. Mas ao contrário, a obra mesmo orfã de seu tempo, abre constantemente novas e originais relações de sentido com o contemporâneo. Isso se chama atualidade da obra de arte. A obra é atual porque nunca é simplesmente peça de museu (no sentido pejorativo). Ela é atual na medida em que nela se desencadeia a dinâmica de desvelamento de sempre novas possibilidades de sentido e, por isso mesmo, de interpretação e compreensão. Por isso a obra nunca é substancial, mas sim, primordialmente processual. Obra é acontecimento. De quê? Do desvelamento. De quê? Do sentido que ela mesma põe em obra e que a cada vez se relaciona com o ser humano numa interpretação compreensiva, isto é, numa interpretação que compreende.

E a funcionalidade? Bem, esta, em relação à obra, é sempre secundária e contingencial, nunca condição sine qua non da obra ser e realizar-se. A obra jamais se consome numa serventia, tal como o metal no martelo ou o silício no chip de um computador. Por isso, precisamos aprender a pensar as obras e a arte sem os filtros da instrumentalidade. Precisamos aprender a pensá-las desde o que elas mesmas são, como são e não simples e convenientemente, porque fácil, forçá-las numa estrutura funcional cuja proveniência se encontra demasiadamente afastada do que obra e arte são.

A funcionalidade serve muito bem para tratar dos mais diversos utensílios em sua serventia, mas não se sustenta como aquilo que se constitui a origem da obra e da arte. Por isso é que toda vez que pensamos o que é digno de ser pensado nas obras e na arte esquecemos da função, pois, toda e a cada vez, são as obras e a arte que por elas mesmas nos convocam a pensar. Pensar a arte e suas obras é antes de tudo deixar ser por elas convocado e nisso aceitar o convite para a livre festa do pensamento, para além da aridez operacional dos conceitos.

Em que se constitui a origem da obra de arte? Bem, isso fica para depois.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Livros II


"Não nos enganemos: só nos é possível colocar as questões da arte porque, desde sempre, estamos submergidos na exclamação contínua que a arte, a cada momento, provoca em nós. Perguntar significa, aqui, já ter recebido sua força, já ter se esbarrado com ela, absorvido seu impacto, já ter - mesmo - perdido o chão, deixando as vertigens aparecerem e, estranhamente, elas mesmas construírem um caminho que possa ser percorrido com o rigor da dedicação diária de toda uma vida. Os caminhos que se apresentam neste livro são, assim, os da própria vertigem.

Em um momento ou em outro, as dúvidas, entretanto, sempre existem: arte, exclamação ou vertigem (tanto faz), de que modo abordá-las? De uma distância precavida que, cuidadosamente, busca observá-las e compreendê-las em seus mínimos detalhes? De um corpo-a-corpo que, como numa luta de boxe, requer a distância apenas como uma perspectiva para o melhor ângulo, mas do que para uma aproximação, para uma mistura de músculos e suores? De uma intimidade completa, na qual, exauridas as distâncias, possa emergir, de fato, uma indicernibilidade radical?

De uma coisa não temos dúvidas: pensar as questões da arte envolve colocar o próprio pensamento em questão, descobrindo-o decisivamente, em maior ou menor grau, também como artístico. Na abertura do século XXI, o pensamento teórico e artístico estabeleceram de tal maneira uma simpatia que não se pode mais pensá-los antiteticamente: a força de atração mútua é sentida por quem quer que se aproxime deles, praticamente anulando, ou, em outras palavras, minimizando-a ao máximo, a força solitária de repulsão.

Ao invés de realizar o anulamento de um dos pólos, tal simpatia provoca o desdobramento de diversidades criativas que, a partir dela, podem eclodir. Entre inúmeras maneiras de se colocar a arte em questão, duas se sobressaem: a indagação direta das próprias obras artísticas e a indagação do modo filosófica de pensar a arte. Ao formular o círculo de conferências que originou este livro, Manuel Antônio de Castro, professor titular do Programa de Pós-Graduação em Letras (Ciência da Literatura), da UFRJ, escolheu, desta vez, a segunda opção.

A arte em questão: as questões da arte propõe, assim, um passeio reflexivo por diversos momentos filosóficos da história do Ocidente: do mito, passando por Platão e Aristóteles, seguin do o percurso comFichte e Nietzsche, até chegar ao século XX com Heidegger, Gadamer, Benjamim e Deleuze. Tal arco do pensamento, dos de maior excelência e importância possíveis, foi realizado, respectivamente, pelos seguintes professores e pesquisadores brasileiros: Werner Aguiar, Alberto Pucheu, Emmanuel Carneiro Leão, Ronaldes de Melo e Souza, Antonio Jardim, Manuel Antônio de Castro (organizador do livro), Luis Rohden, Ivo Lucchesi e Marcelo Jacques de Moraes."

Alberto Pucheu


domingo, 30 de setembro de 2007

Música e funcionalidade II

No post anterior sobre esse assunto (13/09/07) ficaram algumas perguntas no ar. Tudo bem, sabe-se que a cultura científica predomina em todo empenho de formação educacional no ocidente e sabe-se também, e por isso mesmo, que a ciência possui um apelo quase que irresistível. Por isso, não só a educação é em geral voltada para uma formação desde os seus pressupostos, mas atividades tão abrangentes como, por exemplo, a mídia de massa, enfatizam e propagam uma concepção científica do real, incorporando-a ao cotidiano de todos.

Mas será que é só isso? Bem, se assim for, a questão se trata talvez de realizar uma mudança de paradigma, se é que isso é necessário. Pode até ser e talvez isso fosse bastante interessante: ao invés de se maquinar e elaborar as condições para a anulação da vida, tais como armas de destruição em massa (evidentemente não aquelas a que se referiu o Bush sobre o Saddam), o ser humano pudesse talvez explorar mais a fundo as condições de criação em si mesma, o que a princípio poderia, como, aliás, sempre foi em se tratando de arte, engendrar e manter a própria vida porque em primeiro lugar engendra e mantém a condição de possibilidade de ser e do sentido do real.

Não que isso não ocorra, mesmo hoje em dia, pois por mais hegemônico que o ocidente com sua paidéia se pretenda, uma vez que a realidade e suas condições de possibilidade sempre se apresentam de maneira absolutamente diversa e imprevisível. Porém, cabe questionar se a própria visão do que é música (e do que é arte) não se tornou por demais refém de uma concepção totalitária da ciência, em que pese estar muito em voga afirmar que não existem verdades absolutas. Talvez aqui se reproduza aquela velha questão de que a reflexão sobre a arte e, principalmente, sobre a música seja sempre um acontecimento tardio em relação às demais realizações do pensamento ocidental.

Por isso, retomo os questionamentos finais do último post: será que a realização musical (ou artística) pode ser circunscrita a uma funcionalidade pré-estabelecida? Será que em se tratando de música (e arte) a funcionalidade pode realmente prever e pre-determinar os modos próprios e característicos de sua realização? Para uma tentativa de responder apropriadamente, entendo que sejam necessárias duas coisas: primeiro, saber de onde provém a força e o vigor do que chamamos funcionalidade e segundo, como essa força e vigor funcional se manifestou na reflexão acerca da arte no pensamento ocidental.

Primeiro, as primeiras coisas! Podemos compreender a funcionalidade a partir da sentença que afirma que tudo tem uma função ou que nada é sem função. Nesse caso, a funcionalidade estaria pre-disposta desde uma analogia para com a razão, isto é, a partir do que Leibniz afirmara de que “nada é sem razão.” Esta afirmação sim, é que se tornou paradigmática na tradição metafísica do pensamento ocidental sob a forma do “tudo tem uma razão” ou “tudo tem um por quê.” Bem, sem querer aprofundar essa questão no momento, a realidade se nos apresenta muitas vezes de modo bem diferente. Cada um certamente encontrará em sua própria vida “n” situações e circunstâncias que fogem completamente a esse grau de previsibilidade e certeza racional. Evidentemente que contra isso poderá se argumentar que a maioria de nós, na verdade, não detém a posse do “conhecimento” necessário e suficiente para a compreensão, digamos, de “razões que a própria razão desconhece,” o que evidentemente é uma demonstração cabal do autoritarismo de um modo de encaminhamento do pensamento (não vou entrar em mais detalhes, se não a coisa vai longe...).

Por outro lado, a funcionalidade pode ser melhor compreendida desde o sistema aristotélico da causalidade. A causalidade é expressa, como diz Marilena Chauí, através da afirmação silenciosa de “que existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma outra. Acreditamos, assim, que a realidade é feita de causalidades, que as coisas, os fatos, as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e, até mesmo, controlar para o uso de nossa vida.”[1] A técnica, cujo ocidente tanto preza, sintetiza a realidade a partir da instrumentalidade causal e do seu uso antropológico, isto é, um meio para um fim orientado desde a atividade humana. Embora seja possível discutir a prevalência da eficiência sobre a finalidade,[2] a causalidade mantém sempre em tela o nexo entre ato e conseqüência. Ora, na medida em que tudo passa pelo filtro da instrumentalidade técnica super-determinada pela ciência, nada mais razoável do que considerar que a funcionalidade está presente em todos os seres e em todas as realizações do real.

Desse modo, poderia-se perfeitamente dizer que não somente “tudo possui uma razão,” como também e conseqüentemente, “tudo tem uma função.” Nesse sentido, quando se reflete sobre a arte, o tratamento dispensado às obras não difere nenhum pouco da concepção com que se compreende os entes em geral. Essa compreensão passa invariavelmente pela finalidade, pelo uso ou função que cada coisa possui, ou melhor, pela função que lhe é atribuída desde uma perspectiva em que a realidade se encontra subsumida à causalidade.

A atribuição de uma função à arte se estrutura então sobre o pilar da causalidade e por analogia, sobre a funcionalidade que os entes em geral, ao modo do instrumento, adquirem sob essa perspectiva causal. A concepção funcional da arte é levada a cabo pela Estética através da imposição modelar do par conceitual matéria e forma. Nessa concepção estética, a matéria não é nada, a não ser pela sua conformação. Esta conformação, isto é, a forma a que uma matéria é submetida confere não somente sua função, mas fundamentalmente, seu sentido.

Daí, grosseiramente falando, temos que uma missa é um modo de conformação da matéria sonora musical que ganha sentido tão somente através da função em que a obra é empregada. E de fato, historiograficamente falando, compositores do Período Barroco compunham obras quase que descartáveis, algumas quando tocadas uma vez jamais seriam ouvidas novamente. Cite-se o exemplo da música sacra de Bach que ficou esquecida por cerca de cem anos para somente no séc. XIX, em meio ao crescente interesse musicológico pela música do passado, ganhar outra vez importância em novas performances.

Pode-se perguntar e com “razão”, apesar do fato de uma obra ser tão imbuída de funcionalidade e estar tão pre-determinada pelas perspectivas e expectativas da causalidade, a que se deve então sua sobrevivência para além de seu tempo? Por que a obra de arte, sendo “expressão” de uma época transcende sua circunscrição no tempo? O que permite que uma obra escape, por exemplo, a sua função sacro-religiosa e entre nas salas de concerto pelo mundo afora? O que faz, afinal, com que a obra perca ou até mesmo mude seu caráter de funcional? Bem, como a coisa já está longa, isto fica para um próximo post.


[1] CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia, p. 10. São Paulo: Ática, 1994.

[2] HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências, pp. 13-4. Petrópolis: Vozes, 2001.

domingo, 23 de setembro de 2007

Livros I


“O presente livro reúne um grupo de pesquisadores que têm em comum as questões poéticas do real, longe dos jargões conceituais da metafísica. Para tanto se movem nas dimensões enigmáticas da proximidade de poesia e pensamento. Mas isso constitui um grande desafio, porque o linguajar conceitual metafísico tornou-se um uso ordinário sem face. Em todos se faz presente a tarefa de questionar e pôr em questão o mistério do extraordinário. Nisto consiste a originalidade do grupo de pesquisa e dos presenstes textos. E deles brota o convite à leitura questionante e reflexiva, pois aqui não há chave conceitual para abrir o acesso à construção poética do real/ser. Só como caminho e a caminho das questões.

E aí surge algo que pela leitura dos ensaios fica imediatamente perceptível. As falas de cada um e seu linguajar estão assinaladas pela postura pessoal, mas sempre no horizonte comum do questionamento, pois o ser e a poiesis se diz de muitas maneiras. Essa diferença na identidade é uma das linhas de força desta pesquisa co-letiva que dá unidade, mas não uniformidade, a estes ensaios.



Os diferentes discursos se agrupam em duas partes do livro. À primeira chamamos percursos, porque nos ensaios se perceberá facilmente o assédio às questões que nos questionam de diferentes flancos e níveis: os per-cursos. À segunda denominamos incursos, porque se perfazem diá-logos poéticos, onde pensamento e poesia se presentificam como presentes para os leitores. Isso para que se faça presente em cada leitor o apelo de diálogos diferentes e inaugurais com as obras.”

Música e funcionalidade I

Qual a função da música? Entreter? Divertir? Mobilizar? Desenvolver esta ou aquela habilidade intelectual ou motora? Servir de fundo (musical)? Expressar idéias ou sentimentos? Ocupar o vazio do silêncio? São muitas as tentativas de respostas à questão da funcionalidade da música. Não são poucos os esforços em articular outras áreas do conhecimento que se dedicam a essa explicação: sociologia, economia, psicologia, história, antropologia, filosofia e estética, comunicação, terapêuticas diversas, etc., etc. e tal... E conforme o tempo passa, surgem aqui e acolá novas e inéditas interpretações a respeito da função da música.

Lembro de uma ocasião há anos atrás em que fiquei extremamente irritado com uma discussão a respeito desse assunto durante o meu mestrado. A irritação provinha do inconformismo de que a música só pudesse ter valor se fosse justificada por sua função e, conseqüentemente, por um valor atribuído desde uma instância exterior à ela mesma, desde uma dessas áreas de conhecimento "mais aparelhadas e mais competentes" técnica e cientificamente. Afinal de contas, por que aquilo que considerávamos (e, pelo menos, eu ainda considero) como o que dá sentido ao nosso ser e modo de realizar-se (pelo menos o dos músicos) precisa de uma referência externa de validação? Por que, em se tratando de arte, há tanta necessidade de se determinar os princípios científicos de seu funcionamento? Por que os princípios artísticos nunca nos parecem ser suficientes?

Inicialmente, encontro uma possibilidade de interpretação desse tipo de situação a partir de um texto do Professor Emmanuel Carneiro Leão: "A nossa era é científica em sua essencialização. Vivemos a idade da ciência porque é a ciência que determina o ser e a verdade do real. (...) A ciência é hoje a forma que informa toda a nossa compreensão e avaliação da realidade, independente e qualquer que seja nossa atitude frente a esse ou àquele resultado científico. Quer atribuamos à ciência um valor humano, quer lho neguemos, quer vejamos nela apenas algo indiferente para os valores, a ciência determina sempre o sentido do ser que somos e do ser que não somos. Decide a concepção de verdade em que vivemos, nos movemos e existimos.”[1] Desse modo, nossa visão da música e da arte não se encontra distanciada dessa realidade do atual momento do ocidente. Ao contrário, a visão científica do real encontra-se disseminada desde os primeiros anos escolares até e principalmente às Pós-Graduações. É muito tempo para in-formar uma determinada concepção não só do real, mas da verdade (que será objeto de outro post).

Assim, desde uma concepção cientificamente in-formada do real levada a cabo pela educação, cujo valor do que é ou do que não é se decide de antemão pelo cálculo, a funcionalidade cumpre o papel de assegurar que o real se comporte desta ou daquela maneira. Portanto, nada mais plausível do que estabelecer a funcionalidade como o parâmetro supremo de validação de toda e qualquer realidade em plena con-formidade com o princípio científico de aferição do real a que todos nós somos desde muito cedo in-formados.

Mas, será que a realização musical (ou artística) pode ser circunscrita a uma funcionalidade pré-estabelecida? Será que em se tratando de música (e arte) a funcionalidade pode realmente prever e pre-determinar os modos próprios e característicos de sua realização?


[1] Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia na idade da ciência.In: Aprendendo a pensar, Vol. I, p. 11-2. Petrópolis: Vozes, 1977.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Qual seria a maneira adequada de se ouvir (fazer) música?

Quietos? Atentos? Comportados? Conhecendo as obras previamente através de leituras e aná-lises? Articulando as intenções do compositor e as circunstâncias de criação de seu tempo, daquilo a que estamos acostumados chamar de estilos de época? Pasme... creio que não! Pois tudo isso, por mais instrutivo e culto que possa parecer se encontra sempre aquém ou além do que a própria música é e manifesta, bem como do que a arte em geral é e dá a conhecer. Pois, ser que se manifesta é o ato supremo de toda realização e não um simples pre-tender ser.

A música (e a arte) não é, nem se faz num ato exclusivo do conhecimento de um conjunto de códigos, regras e procedimentos com os quais se possa pre-tender garantir de antemão a efetuação de uma obra musical (artística). Se assim fosse, compor ou ouvir qualquer obra musical seria algo plenamente calculável, isto é, assegurado de antemão pela pura e simples aplicação das normas de procedimento. Seria algo tão corriqueiro quanto dirigir um carro ou andar de bicicleta, em que pese o fato de nós brasileiros, tão afeiçoados às mais diversas normas e códigos desde muito cedo na escola (afinal vivemos num país cujo lema é “ordem e progresso”), não respeitarmos enquanto sociedade os procedimentos mais básicos do trânsito. E, no entanto, compor e compreender música, ou qualquer arte, só não é algo “mais corriqueiro” em virtude de que somos por demais educados desde as perpectivas das normas e alienados desde os mais diversos procedimentos (leia-se: metodologia) de todo e qualquer fazer.

Ora, o conhecimento dos códigos e das normas de realização se relaciona sempre com o que já passou, com o que já foi feito. No entanto, “toda obra de arte é como uma palavra que é dita uma só vez, e não pode ser repetida.”[1] E por que não? Para responder é simples: imagine Da Vinci pintar de novo a Mona Lisa. Que tal Beethoven compor novamente a 5ª. Sinfonia? Absurdo, não? Sendo a obra a pura manifestação do anseio de realização de um porvir, isto é, do novo, ela não se curva, nem se atém às normas de procedimento. Quantos não são os exemplos que comprovam o empenho dos compositores em transcender toda e qualquer norma de procedimento para instaurar nas e pelas obras um novo aceno de realização, um novo aceno de ser? Não fosse isso, se seguíssemos sempre as normas de procedimentos e a metodologia consgrada deste ou daquele fazer, talvez ainda estivéssemos compondo canto gregoriano ou coisa que o valha! Nada contra o gregoriano, que pessoalmente adoro. Mas, quanta coisa ficaria de fora! Quanta possibilidade de realização e de ser!

Assim, na perspectiva de um horizonte entulhado e obscurecido por códigos, regras e procedimentos é que até mesmo as escolas de arte estão cheias de operacionalizações matemáticas de conteúdos que se somam e se multiplicam indefinida e indistintamente, impondo a mais intensa sanha de re-produção do conhecimento passado e acabado, muito pouco afeitas e abertas ao co-nhecimento (co-nascere) do futuro, isto é, da criação.

Portanto, a pergunta a respeito da maneira adequada de ouvir (fazer) música, sem querer me alongar na discussão desse “adequado”, digamos, é a maneira que a própria música nesta ou naquela obra por si mesma im-põe. Para tal, em primeiro lugar, precisamos ser todo ouvidos, algo cada vez mais difícil num tempo desmedidamente excessivo de informação e conhecimento. Pois a coisa é mais ou menos como diz Manoel de Barros:

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
Mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam.[2]

Desse modo, um possível passo para que possamos realmente nos permitir ouvir a música nas obras talvez seja abrir mão das mais diversas e ruidosas fontes de informação, códigos de conduta e de procedimentos e nos despojarmos um pouco do nosso conhecimento prévio do mundo, isto é, dos nossos pré-conceitos. Abaixo a re-produção! Criatividade já!



[1] Emmanuel Carneiro Leão, Aristóteles e as questões da arte. In: A arte em questão: as questões da arte. Manuel Antônio de Castro (org.). Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

[2] Manuel de Barros, Livro sobre o nada. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000, p. 53

domingo, 9 de setembro de 2007

Autonomia da Música

Parece ser um absurdo admitir que a música é autônoma, isto é, que possui a faculdade de se governar por si mesma ou de se reger por suas próprias leis. O que é próprio da música acontece sempre não numa autonomia, independentemente de tudo e de todos, mas numa determinada relação. Que relação é essa? É a relação com o próprio ser humano. Esta relação não se dá de qualquer maneira, mas sim numa mútua referência. Em outras palavras, a música produz sentido sim, mas enquanto se dá numa relação referencial com o homem. Essa relação não é algo que propriamente se adquira, mas se dá de modo co-extensivo ao ser humano, quer dizer, música e ser humano mutuamente se implicam. No entanto, por ser co-extensiva, isso não significa que a música seja uma representação subjetiva, seja do compositor, seja do intérprete ou do público. Na música não se dá uma alegoria de outra coisa qualquer, mas se manifesta aquilo mesmo que seu próprio discurso pronuncia em sua plenitude de sentido. Nessa pronúncia está ex-posta e dis-posta a própria relação direta para com o ser humano.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Desaparecimento da linguagem, desaparecimento do ser...

Publicado na Folha On-Line em 16/02/2004

Quase metade das línguas estará extinta em 100 anos, dizem cientistas

MARIANA TIMÓTEO DA COSTA
da BBC, em Seattle

Cerca de 40% dos idiomas falados hoje no mundo desaparecerão entre os próximos 50 e 100 anos, alertou um painel de lingüistas durante o encontro anual da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência, na silga em inglês), que acontece em Seattle. Segundo os cientistas, o fim de boa parte das 6.809 línguas faladas no planeta não só trará impactos culturais como também conseqüências econômicas. "Veremos uma extinção de línguas milhares de vezes mais acelerada do que a extinção das espécies", disse o lingüista Stephen Anderson, da Universidade de Yale. As razões principais para o desaparecimento dos idiomas, de acordo com os lingüistas, são a dominação econômica e cultural e a explosão demográfica. "Hoje, o império americano fortalece o inglês (primeira língua mais falada do mundo como segundo idioma, e segunda mais falada como primeiro) e a explosão demográfica da China torna o chinês o idioma mais falado do mundo como primeira língua", afirmou Anderson.

Sibéria

Um dos exemplos mais interessantes sobre o desaparecimento de idiomas foi dado por David Harrison, lingüista do Swarthmore College, na Pensilvânia. Em julho do ano passado (2003), o cientista realizou uma expedição à Sibéria e constatou que duas línguas amplamente faladas pelos pescadores e criadores de animais da região hoje contam com menos de 40 seguidores. Eles simplesmente estão trocando as línguas, chamadas Tofa e Chulym, pelo russo. "É mais fácil eles se comunicarem com os demais siberianos com o russo. Mas registramos uma perda de identidade forte nesses povos, já que as antigas línguas têm formas particulares de designar atividades pesqueiras e com os animais. Isso ficará perdido para sempre", contou Harrison.

Outro exemplo são tribos na África e na Amazônia. Segundo os cientistas, com a extinção de línguas menores, atividades econômicas poderão ficar comprometidas porque esses povos têm um conhecimento da região que está associado ao nome que dão a plantas, rituais e animais. "No caso das plantas, uma indústria farmacêutica que quiser pesquisar novos princípios ativos nas florestas pode ter dificuldade em encontrar alguma coisa com a ajuda da população local", exemplificou Anderson. Os cientistas, no entanto, acham que pode se fazer pouco para evitar essa extinção. O painel reunido em Seattle concordou que o dever da ciência é documentar o quanto puder essas línguas para que elas não sejam apagadas da história. Mas, apesar das adversidades, os lingüistas foram unânimes em dizer que o mundo não caminha para uma língua universal, como o Esperanto. "Não corremos esse risco. Mesmo que haja uma língua dominando o mundo, em um período de dez anos ela sofrerá várias mudancas em diferentes países e culturas, e uma outra língua acabará sendo criada. A linguagem humana é bastante dinâmica", concluiu David Lightfoot, da Universidade de Georgetown, em Washington.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

O que propriamente percebemos quando ouvimos música?

Para ser bem objetivo, música! Parece óbvio demais para ser verdade, mas é isso mesmo. Esse estranhamento com uma resposta assim deve-se ao fato de que na Cultura Ocidental estamos por demais habituados a estabelecer uma representação das coisas e não, manter um relacionamento direto com elas. Desse modo, quando inquirido a respeito do que alguma coisa é, parece sempre um absurdo alguém responder, por exemplo, que música é música ou que linguagem é linguagem. Frases como estas logo são taxadas de tautológicas e como tal, desqualificadas como definições que não levam a nada. Na verdade, a estrutura matemática da lógica proposicional requer que façamos, queiramos ou não, um exercício de representação, estabelecendo equivalências ou não entre os seus termos. No entanto, certas definições tais como a da arte (aí se inclui a música), da vida, do ser, etc., de certa maneira sempre soam incompletas em virtude de transcenderem completamente essa estrutura matemática da proposição.

Certamente que podemos definir precisamente o que ocorre quando acionamos um interruptor de luz, ou de qualquer artefato tecnológico, uma vez que este já contém previamente programado todas as suas possibilidades de ser aquilo que é. Poderíamos então afirmar que estes artefatos apresentam uma configuração fechada do e para o mundo. Ora, o mesmo não podemos dizer nem da arte, nem da vida e muito menos do ser como possibilidade.

Por isso, só podemos mesmo aprofundar a afirmação de que a música, em sua vigência de sentido, é ela mesma aquilo que percebemos quando "ouvimos música." Isto de forma nenhuma é redundante, mas diz respeito ao sentido que é próprio e inalienável de cada coisa. Emmanuel Carneiro Leão (Aprendendo a pensar, Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1992.) nos ajuda nessa tarefa quando diz que "na música se dá o mais alto grau de realização de qualquer real." O que é isto – realização do real? Nada mais do que vir à vigência substantivamente, isto é, com o sentido e a densidade do que é próprio de cada vigente. No caso da música, ela possui uma densidade e sentido que lhe são próprios, cuja propriedade se compreende total e plenamente apenas a partir de sua própria vigência con-crescente e não a partir dos diversos discursos a ela periféricos.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Para começar...

Uma tentativa de pensar a experiência com a música passa pelo que na origem dessa experiência permanece impensado e que manifesta o inaugural incapaz de ser medido e calculado através de um registro plenamente identificável e representável. O inaugural da origem dificilmente se deixa representar, resiste ser apropriado por um sistema de redução lógica e racional. O pensar a origem é sempre um pensar memorável. Na e pela memória das origens dá-se o pensar do que é digno de ser pensado. “A memória do poetar pensante e do pensar poético é a memória original das origens originantes”.[i] Por isso, a experiência originária com a música não pode se dar simplesmente nos moldes do que um sujeito da razão faz com um objeto do conhecimento. Toda experiência com o inaugural, isto é, com a origem que não cessa de originar é fundamentalmente diferente da aquisição e do acúmulo de conhecimentos a respeito de um objeto. Na unidade de música e homem ambos se convocam mutuamente numa co-respondência recíproca.

Apesar da separação dessa unidade implicar na destituição da experiência conjunta, estas e tantas outras instâncias de comum-unidade de sentido se desarticulam desde a prototípica separação do inteligível e do sensível, imposta pelo predomínio de uma experiência, puramente intelectiva, sobre outra, denominada sensível. Analogamente, formula-se a separação de homem e mundo, o predomínio daquele sobre este e o desdobrar-se e estender-se desse predomínio como estrutura válida e de validação para toda e qualquer realidade na relação modelar sujeito-objeto. Nessa relação, o modo de manifestação de sentido se baseia no sistema de representação. O real não mais deve ser inter-pretado, mas sim medido e calculado, sendo dis-posto numa e por uma representação do intelecto assegurando-o como algo sempre dis-ponível.[ii]



[i] Ronaldes de Melo e Souza, A criatividade da memória. Ensaio publicado em Prismas: historicidade e memória / Francisco Venceslau dos Santos (org.). Rio de Janeiro: Centro de Observação do Contemporâneo / Caetés, 2001/2, p. 31.

[ii] Cf. Martin Heidegger, Ensaios e conferências. Tradução de E. C. Leão, G. Vogel e M. S. C. Schuback. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 39-60.