sexta-feira, 19 de junho de 2009

Livros III

ArtCMT1

Não somos nós que pensamos as questões. São as questões que nos pensam, até para que possamos pensá-las. O que são as questões? Elas são o manancial originário de onde brota o pensamento. Um problema é passível ou não de solução: dois e dois são quatro. Uma questão é diferente de um problema, e jamais tem solução. O que são a vida e a morte? O que é o tempo que as conjuga? Aqui não há respostas definidas. Há infinitos e inexauríveis percursos. Há convite à travessia. Nós somos doações das questões, elas excedem o homem. A Vida e a Morte vigem no homem enquanto ele vive e morre como doação do Tempo. Por isso, pensar é corresponder às questões que nos erigem em nosso próprio ser. Pensar é conduzir o questionamento para o lugar em que desde sempre estamos, somos, e dentro do qual nos realizamos.

ArtCMT2 O homem, de qualquer época e lugar, está sempre e necessariamente implicado em múltiplas relações com as coisas. A coisa é res, o real. A coisa, como nos diz a conexão etimológica dos termos, é o que sempre está em causa. Em sua relação originariamente metafísica – a se realizar dentro (metá) do real (phýsis) –, é o próprio real quem dirige ao homem o apelo de desvelamento de sentido. “A única casa artística é a Terra toda / Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma” (Alberto Caeiro). O real jamais está fora do homem: o homem é o próprio real acontecendo e se vendo no homem. Não podemos definí-los: o real é uma questão, o homem é uma questão.

Na modernidade técnico-cientificista, o pensamento entrou em um impasse. O homem arvorou-se em sujeito – aquele que, assumindo uma distância epistemológica da coisa, converteu-a em objeto. A  coisa foi objectualizada pela redução do pensamento a uma razão instrumental que só sabe calcular, medir, controlar. Vivemos sob o império da lógica. Instrumentalizado o pensamento, instrumentaliza-se o próprio homem. Sua dignidade é ferida. Nada parece contar além da funcionalArtCMT3idade de um sistema que recobre a terra inteira. Foi o que Hölderlin chamou de tempos de penúria, de fuga dos deuses. A hora é de suspender o sentido, evocando uma nova época, uma nova e originária iluminação poética do sentido do real, por dom do diálogo. O contrário da lógica não é o ilógico, a desrazão. O contrário da lógica é o diálogo. Diálogo é a movimentação dentro (diá-) do lógos, dentro da dinâmica de retração do real que, mostrando-se como fenômeno, retrai o seu sentido, porque jamais podemos definir o que é o real.

ArtCMT4 O homem é húmus, terra. E ele não é sequer possível sem corpo e sem mundo. Nós não sabemos o que é terra: ela tanto mais se dá como mundo quanto mais se retrai como terra. Não sabemos o que é mundo: na retração da terra, ela concita o homem à instalação de mundo, o sentido do real. Não sabemos o que é corpo: longe de podermos definí-lo como materialidade ou organismo, ele é o lugar em que o embate de terra e mundo incorpora o lógos do diálogo, movimentando o pensamento. Porque “poeticamente o hamem habita esta Terra” (Hölderlin), é sempre no espaço da arte que, em todos os seus empenhos e desempenhos, as questões se entrelaçam.

Organizado pelo Prof. Manuel Antônio de Castro, titular de Poética da UFRJ, este livro reúne ensaios cujo penmsamento se deixa provocar sempre pelas mesmas questões: corpo, mundo, terra, que são o lugar e o âmbito em que a arte acontece. O leitor, no vigor do diálogo em torno das questões que o constituem em seu próprio ser, desveladas sob diferentes enfoques, será convidado a realizar a travessia rumo ao que lhe é próprio, fazendo-se poeta da livre apropriação de seu destino e sentido.

 

Antônio Máximo Ferraz

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Revista Confraria n°. 19

Encontra-se online a edição de terceiro aniversário da Revista Confraria em que foi publicado um artigo meu: "O paradoxo do mito na cultura ocidental". O endereço para leitura é:

http://www.confrariadovento.com/revista/numero19/index.htm

Por uma questão editorial e isonômica, não aparecem as referências bibliográficas ao final do texto. De acordo com os editores, a proposta da revista segue este parâmetro de ouro, pois tem a finalidade de um pensamento sempre original, autêntico, criativo e sem amarras. Por isso, sempre suprimem as referências e fundamentos acadêmicos que insistem em nos intimidar.

Em todo caso, por um vício acadêmico meu e para quem ler o artigo e quiser dar uma olhadinha nas referências, ei-las:

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1993.

MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade. São Paulo: Annablume, 1999.

OTTO, Walter Friedrich. Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. Trad. Ordep Trindade Serra. São Paulo: Odysseus Editora, 2005.

—. Teofania. O Espírito da Religião dos Gregos Antigos.Trad. Ordep Trindade Serra. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

TORRANO, JAA. O mundo como função de Musas. In: Hesíodo. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 1995. 13-102.

sábado, 15 de março de 2008

Música e interpretação II

Freqüentemente vem à tona aquela afirmação de que o intérprete deve obedecer as indicações do compositor colocadas na partitura, isto é, o intérprete deve ser fiel a intenção do compositor.

Duas perguntas importantes surgem acerca dessa relação: 1) o que é interpretação? 2) quem é o intérprete e qual é realmente o seu papel?

Tudo bem, suponha que na partitura de uma obra qualquer o seu compositor tenha indicado um crescendo a partir de um trecho em piano até outro com a indicação de forte. Supondo-se também que todos sabem o que significam piano, crescendo e forte, o que ninguém consegue afirmar categoricamente é a gradação dessas indicações. A dinâmica não é, ou pelo menos não se encontra quantificada em decibéis. Evidentemente que há uma certa experiência constituída coletivamente por parte de compositores e intérpretes, mas isso de modo nenhum se dá como garantia de uma interpretação uniforme.

O desejo da interpretação uniforme ou de modelos interpretativos é uma das conseqüências nefastas do ingresso da música na academia, embora existam outras bastante positivas. Certamente que na música eletro-acústica a parametrização da dinâmica, bem como de outros fatores da performance musical é completamente viável. Já no caso da performance humana, nem de longe a exatidão dos parâmetros é factível ou, creio, sequer desejável.

Bem, já que parece ser impossível esse grau de exatidão na performance de parâmetros simples como a dinâmica, pergunta-se, como seria possível ao intérprete ser fiel a intenção do compositor? Na medida em que a precisão se encontra comprometida pela ausência da definição exata de parâmetros, a própria questão da fidelidade ao compositor pode muito bem ser colocada em xeque. Diga-se de passagem, não há nada de mais nisso, uma vez que não se trata de nenhum insulto ou desrespeito seja à intenção do compositor, seja à sua memória.

Na verdade, o conservadorismo da atividade musical de tradição erudita, na qual a grande maioria dos músicos no Brasil foi e ainda é em muitos casos educada conduziu os intérpretes ao dilema de se situarem entre a obediência às determinações do compositor e a liberdade de sua própria atividade criativa enquanto intérpretes e executantes. Nessa tradição, o compositor, assim como o professor em relação a conteúdos das disciplinas, foi tratado como autoridade máxima de sua própria obra, uma espécie de semi-deus ou totem intocável e irrepreensível, um claro resquício do autoritarismo político e conservatorial. Em nada esse tipo de imposição tem a ver com o ato de interpretar. Ao contrário, as determinações da fidelidade ao compositor impedem o livre ato criativo, vedam a possibilidade da própria interpretação e da interpretação própria.

Por isso, cabe perguntar outra vez: o que é interpretação? Há muitas definições. A mais comum provém do verbo interpretar e quer dizer "determinar o significado preciso", seja de um texto ou de uma lei. É nesse sentido que através das mais diversas disciplinas se tentou e muitas vezes se tenta determinar o significado preciso da música e suas obras. No entanto, interpretação também pode significar "dar certo sentido a alguma coisa, entender ou ainda julgar". Bem, para isso, recebe-se muita educação, seja da teoria, do treinamento auditivo, da história, da análise ou da estética. Afinal, na cultura ocidental letrada, a capacidade de compreender e julgar advém de longo período de instrução e treino. Nesse caso, nunca sabemos se o que compreendemos e julgamos o fazemos por nossa própria conta ou se esse julgar e compreender já não são mera conseqüência dos esquemas de doutrinamento conceitual e do condicionamento comportamental do ver, do ouvir e do sentir frente à música desde os compartimentos e desde as formatações pressupostas pela ciência. Nesse caso, a compreensão e o julgamento se dariam como efeito num sistema de causalidade que remete para as mais diversas disciplinas o seu elemento desencadeador, isto é, sua causa.

Mas, então, é só isso? Será que simplesmente nos colocamos dentro ou fora dos diversos esquemas conceituais ou será que interpretação é algo mais que isso? De acordo com Domenico Turco, uma das acepções de interpretação provém de inter-pretium, com a qual concorda Pinharanda Gomes no Prefácio ao Organum de Aristóteles: "O substantivo latino interpretatio tem origem na feira, no negócio, na discussão dos preços ou do preço, pretium, face ao qual os interlocutores assumem posições diversas, de onde o interpretium". Essa é uma versão deveras estranha. Para tentar compreender melhor a relação de inter-pretium com o intérprete, especialmente o músico, peço a ajuda do Prof. Manuel Antônio de Castro. Examinemos com ele os componentes da palavra:

"O prefixo inter e o radical pretium. Inter, quando traduzido por "entre", põe em cena o diálogo, o debate em que há posições diferentes. Indica também o lugar no qual e a partir do qual acontece o diálogo, o embate. O preço é algo mutável, que se define no decorrer e como conseqüência do diálogo. É o valor que está em jogo. O diálogo em torno do jogo do valor se faz a partir do lugar no qual os dialogantes se movem. A este lugar de abertura e possibilidade do debate e embate deram os gregos o nome de ethos. A tensão e relação do "entre" como diálogo e do pretium como ethos fazem aparecer a terceira dimensão de toda interpretação: o barganhar, o especular. Todo interpretar implica, pois, o diálogo, o ethos, o especular. Especular é um verbo comum tanto à interpretação comercial como à filosófica. E isso não é de estranhar, pois a palavra interpretatio é a tradução da palavra grega hermeneia, formada do verbo hermeneuein, interpretar: "Heremeneuein, hermeneia e hermeneus não dizem como sempre se ouve, esclarecer no sentido de conduzir uma coisa estranha e obscura para o âmbito do claro e familiar da razão e do discurso".[1] A tarefa do intérprete não consiste em esclarecer o sentido da obra, que nela está oculto, mas num desvelar que implica: diálogo, ethos, especulação".[2]

As questões aqui trazidas à tona não se encontram nos manuais de interpretação da teoria musical ou do treinamento auditivo e tampouco no da história, da análise ou da estética. Por isso desconfiamos que a atividade do intérprete está muito aquém ou além de seus domínios. Assim, devo perguntar, afinal, em que consiste o diálogo do intérprete e em que sentido, ao interpretar a obra, chega ele ao estabelecimento do que aqui se nomeou por preço? Assim, retomo aqui a segunda pergunta que fiz:  quem é o intérprete e qual é realmente o seu papel? Mas isso, fica para o próximo post.


[1] Carneiro Leão, Aprendendo a pensar, vol I. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 248.

[2] Castro, Poética e poiésis. Rio de Janeiro: Manuscrito, 1998, p. 4.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Música e interpretação I

Não é incomum lermos ou ouvirmos que o intérprete é aquele que se situa como mediador entre o compositor e o ouvinte. Essa leitura resulta, de um lado, do predomínio na atualidade da teoria da informação e de outro, da exacerbação do papel do intérprete (do concertista) ocorrida ainda no séc. XIX, bem como de sua posterior inserção no que alguns chamam de cadeia produtiva da música.
Ao se conceber o intérprete como mediador tenho sempre a impressão de que há uma grande confusão a respeito do que a palavra interpretação quer dizer. Acho que é necessário, em primeiro lugar, distinguir o intérprete daquilo que corriqueiramente entendemos como "tradutor-intérprete". Vejamos: o tradutor-intérprete, este sim, media duas partes que falam idiomas diferentes. Nesse sentido, o tradutor-intérprete será tão melhor quanto mais desaparecer na medida em que desempenha seu papel de mediador. A princípio, o tradutor-intérprete não pode, ou pelo menos não deve, interferir no sentido do que originalmente se diz. Assim, atuação do tradutor-intérprete é marcada pela fidelidade e pela literalidade. Nesse campo de atuação essa é a garantia do que se considera como um bom desempenho profissional.
Já o músico intérprete, ao contrário, não pode simplesmente desaparecer. Ao contrário do tradutor-intérprete ele não realiza a mera justaposição de termos como por exemplo the book is on the table = o livro está sobre a mesa. A presença do intérprete na música não pode simplesmente ser dispensada, não somente porque a execução musical está diretamente ligada a sua atividade, mas acima de tudo porque a interpretação é um acontecimento presente tanto no compositor, quanto no executante, bem como no ouvinte.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Música e funcionalidade III

Bem, já se vai um longo período desde o úlltimo post. Gostaria de retomar um assunto que ficou meio que suspenso. No post do dia 30/09/2007, algumas questões foram colocadas sob a forma de perguntas. Apenas para recapitular, são elas: pode-se perguntar e com “razão”, apesar do fato de uma obra ser tão imbuída de funcionalidade e estar tão pre-determinada pelas perspectivas e expectativas da causalidade, a que se deve então sua sobrevivência para além de seu tempo? Por que a obra de arte, sendo “expressão” de uma época transcende sua circunscrição no tempo? O que permite que uma obra escape, por exemplo, a sua função sacro-religiosa e entre nas salas de concerto pelo mundo afora? O que faz, afinal, com que a obra perca ou até mesmo mude seu caráter de funcional?

Podemos dizer que a obra jamais sobreviveria à coisa alguma se ela fosse tão somente “expressão” de uma época. Certamente que a obra pode expressar isso ou aquilo, mas, convenhamos, isso de modo algum é exclusividade sua. A Paixão segundo São Mateus de Bach não sobreviveu pelo empenho de Mendelssohn, mesmo que reconheçamos como dele os merecidos créditos pelo resgate da obra de Bach.

Também não é a função sacra da Paixão que nela se possa reconhecer que garante sua sobrevivência a sua época, principalmente em face da situação deplorável da música sacra nas igrejas da atualidade, generalisticamente falando. É preciso reconhecer que além do mero interesse historiográfico de preservação de acervo documental, é a obra, antes de tudo, que se manifesta digna de resgate, é ela que instaura o seu próprio tempo e se institui co-partícipe da mesma temporalidade que a nossa, isto é, de nossa com-temporaneidade. A obra inaugura a cada vez o seu próprio tempo e por isso ela sobrevive, quando é realmente obra, a sua época.

Igreja de São Tomás (Thomaskirche),
em Leipzig, onde Bach trabalhou.

Aquele mundo epocal de Bach ruiu, não existe mais, nem volta mais, por mais que nos esforcemos em nossos empenhos hitoriográficos. Não se pode considerar sua música como o restou de sua época sob pena de a tratarmos como mero escombro. Mas ao contrário, a obra mesmo orfã de seu tempo, abre constantemente novas e originais relações de sentido com o contemporâneo. Isso se chama atualidade da obra de arte. A obra é atual porque nunca é simplesmente peça de museu (no sentido pejorativo). Ela é atual na medida em que nela se desencadeia a dinâmica de desvelamento de sempre novas possibilidades de sentido e, por isso mesmo, de interpretação e compreensão. Por isso a obra nunca é substancial, mas sim, primordialmente processual. Obra é acontecimento. De quê? Do desvelamento. De quê? Do sentido que ela mesma põe em obra e que a cada vez se relaciona com o ser humano numa interpretação compreensiva, isto é, numa interpretação que compreende.

E a funcionalidade? Bem, esta, em relação à obra, é sempre secundária e contingencial, nunca condição sine qua non da obra ser e realizar-se. A obra jamais se consome numa serventia, tal como o metal no martelo ou o silício no chip de um computador. Por isso, precisamos aprender a pensar as obras e a arte sem os filtros da instrumentalidade. Precisamos aprender a pensá-las desde o que elas mesmas são, como são e não simples e convenientemente, porque fácil, forçá-las numa estrutura funcional cuja proveniência se encontra demasiadamente afastada do que obra e arte são.

A funcionalidade serve muito bem para tratar dos mais diversos utensílios em sua serventia, mas não se sustenta como aquilo que se constitui a origem da obra e da arte. Por isso é que toda vez que pensamos o que é digno de ser pensado nas obras e na arte esquecemos da função, pois, toda e a cada vez, são as obras e a arte que por elas mesmas nos convocam a pensar. Pensar a arte e suas obras é antes de tudo deixar ser por elas convocado e nisso aceitar o convite para a livre festa do pensamento, para além da aridez operacional dos conceitos.

Em que se constitui a origem da obra de arte? Bem, isso fica para depois.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Livros II


"Não nos enganemos: só nos é possível colocar as questões da arte porque, desde sempre, estamos submergidos na exclamação contínua que a arte, a cada momento, provoca em nós. Perguntar significa, aqui, já ter recebido sua força, já ter se esbarrado com ela, absorvido seu impacto, já ter - mesmo - perdido o chão, deixando as vertigens aparecerem e, estranhamente, elas mesmas construírem um caminho que possa ser percorrido com o rigor da dedicação diária de toda uma vida. Os caminhos que se apresentam neste livro são, assim, os da própria vertigem.

Em um momento ou em outro, as dúvidas, entretanto, sempre existem: arte, exclamação ou vertigem (tanto faz), de que modo abordá-las? De uma distância precavida que, cuidadosamente, busca observá-las e compreendê-las em seus mínimos detalhes? De um corpo-a-corpo que, como numa luta de boxe, requer a distância apenas como uma perspectiva para o melhor ângulo, mas do que para uma aproximação, para uma mistura de músculos e suores? De uma intimidade completa, na qual, exauridas as distâncias, possa emergir, de fato, uma indicernibilidade radical?

De uma coisa não temos dúvidas: pensar as questões da arte envolve colocar o próprio pensamento em questão, descobrindo-o decisivamente, em maior ou menor grau, também como artístico. Na abertura do século XXI, o pensamento teórico e artístico estabeleceram de tal maneira uma simpatia que não se pode mais pensá-los antiteticamente: a força de atração mútua é sentida por quem quer que se aproxime deles, praticamente anulando, ou, em outras palavras, minimizando-a ao máximo, a força solitária de repulsão.

Ao invés de realizar o anulamento de um dos pólos, tal simpatia provoca o desdobramento de diversidades criativas que, a partir dela, podem eclodir. Entre inúmeras maneiras de se colocar a arte em questão, duas se sobressaem: a indagação direta das próprias obras artísticas e a indagação do modo filosófica de pensar a arte. Ao formular o círculo de conferências que originou este livro, Manuel Antônio de Castro, professor titular do Programa de Pós-Graduação em Letras (Ciência da Literatura), da UFRJ, escolheu, desta vez, a segunda opção.

A arte em questão: as questões da arte propõe, assim, um passeio reflexivo por diversos momentos filosóficos da história do Ocidente: do mito, passando por Platão e Aristóteles, seguin do o percurso comFichte e Nietzsche, até chegar ao século XX com Heidegger, Gadamer, Benjamim e Deleuze. Tal arco do pensamento, dos de maior excelência e importância possíveis, foi realizado, respectivamente, pelos seguintes professores e pesquisadores brasileiros: Werner Aguiar, Alberto Pucheu, Emmanuel Carneiro Leão, Ronaldes de Melo e Souza, Antonio Jardim, Manuel Antônio de Castro (organizador do livro), Luis Rohden, Ivo Lucchesi e Marcelo Jacques de Moraes."

Alberto Pucheu


domingo, 30 de setembro de 2007

Música e funcionalidade II

No post anterior sobre esse assunto (13/09/07) ficaram algumas perguntas no ar. Tudo bem, sabe-se que a cultura científica predomina em todo empenho de formação educacional no ocidente e sabe-se também, e por isso mesmo, que a ciência possui um apelo quase que irresistível. Por isso, não só a educação é em geral voltada para uma formação desde os seus pressupostos, mas atividades tão abrangentes como, por exemplo, a mídia de massa, enfatizam e propagam uma concepção científica do real, incorporando-a ao cotidiano de todos.

Mas será que é só isso? Bem, se assim for, a questão se trata talvez de realizar uma mudança de paradigma, se é que isso é necessário. Pode até ser e talvez isso fosse bastante interessante: ao invés de se maquinar e elaborar as condições para a anulação da vida, tais como armas de destruição em massa (evidentemente não aquelas a que se referiu o Bush sobre o Saddam), o ser humano pudesse talvez explorar mais a fundo as condições de criação em si mesma, o que a princípio poderia, como, aliás, sempre foi em se tratando de arte, engendrar e manter a própria vida porque em primeiro lugar engendra e mantém a condição de possibilidade de ser e do sentido do real.

Não que isso não ocorra, mesmo hoje em dia, pois por mais hegemônico que o ocidente com sua paidéia se pretenda, uma vez que a realidade e suas condições de possibilidade sempre se apresentam de maneira absolutamente diversa e imprevisível. Porém, cabe questionar se a própria visão do que é música (e do que é arte) não se tornou por demais refém de uma concepção totalitária da ciência, em que pese estar muito em voga afirmar que não existem verdades absolutas. Talvez aqui se reproduza aquela velha questão de que a reflexão sobre a arte e, principalmente, sobre a música seja sempre um acontecimento tardio em relação às demais realizações do pensamento ocidental.

Por isso, retomo os questionamentos finais do último post: será que a realização musical (ou artística) pode ser circunscrita a uma funcionalidade pré-estabelecida? Será que em se tratando de música (e arte) a funcionalidade pode realmente prever e pre-determinar os modos próprios e característicos de sua realização? Para uma tentativa de responder apropriadamente, entendo que sejam necessárias duas coisas: primeiro, saber de onde provém a força e o vigor do que chamamos funcionalidade e segundo, como essa força e vigor funcional se manifestou na reflexão acerca da arte no pensamento ocidental.

Primeiro, as primeiras coisas! Podemos compreender a funcionalidade a partir da sentença que afirma que tudo tem uma função ou que nada é sem função. Nesse caso, a funcionalidade estaria pre-disposta desde uma analogia para com a razão, isto é, a partir do que Leibniz afirmara de que “nada é sem razão.” Esta afirmação sim, é que se tornou paradigmática na tradição metafísica do pensamento ocidental sob a forma do “tudo tem uma razão” ou “tudo tem um por quê.” Bem, sem querer aprofundar essa questão no momento, a realidade se nos apresenta muitas vezes de modo bem diferente. Cada um certamente encontrará em sua própria vida “n” situações e circunstâncias que fogem completamente a esse grau de previsibilidade e certeza racional. Evidentemente que contra isso poderá se argumentar que a maioria de nós, na verdade, não detém a posse do “conhecimento” necessário e suficiente para a compreensão, digamos, de “razões que a própria razão desconhece,” o que evidentemente é uma demonstração cabal do autoritarismo de um modo de encaminhamento do pensamento (não vou entrar em mais detalhes, se não a coisa vai longe...).

Por outro lado, a funcionalidade pode ser melhor compreendida desde o sistema aristotélico da causalidade. A causalidade é expressa, como diz Marilena Chauí, através da afirmação silenciosa de “que existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma outra. Acreditamos, assim, que a realidade é feita de causalidades, que as coisas, os fatos, as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e, até mesmo, controlar para o uso de nossa vida.”[1] A técnica, cujo ocidente tanto preza, sintetiza a realidade a partir da instrumentalidade causal e do seu uso antropológico, isto é, um meio para um fim orientado desde a atividade humana. Embora seja possível discutir a prevalência da eficiência sobre a finalidade,[2] a causalidade mantém sempre em tela o nexo entre ato e conseqüência. Ora, na medida em que tudo passa pelo filtro da instrumentalidade técnica super-determinada pela ciência, nada mais razoável do que considerar que a funcionalidade está presente em todos os seres e em todas as realizações do real.

Desse modo, poderia-se perfeitamente dizer que não somente “tudo possui uma razão,” como também e conseqüentemente, “tudo tem uma função.” Nesse sentido, quando se reflete sobre a arte, o tratamento dispensado às obras não difere nenhum pouco da concepção com que se compreende os entes em geral. Essa compreensão passa invariavelmente pela finalidade, pelo uso ou função que cada coisa possui, ou melhor, pela função que lhe é atribuída desde uma perspectiva em que a realidade se encontra subsumida à causalidade.

A atribuição de uma função à arte se estrutura então sobre o pilar da causalidade e por analogia, sobre a funcionalidade que os entes em geral, ao modo do instrumento, adquirem sob essa perspectiva causal. A concepção funcional da arte é levada a cabo pela Estética através da imposição modelar do par conceitual matéria e forma. Nessa concepção estética, a matéria não é nada, a não ser pela sua conformação. Esta conformação, isto é, a forma a que uma matéria é submetida confere não somente sua função, mas fundamentalmente, seu sentido.

Daí, grosseiramente falando, temos que uma missa é um modo de conformação da matéria sonora musical que ganha sentido tão somente através da função em que a obra é empregada. E de fato, historiograficamente falando, compositores do Período Barroco compunham obras quase que descartáveis, algumas quando tocadas uma vez jamais seriam ouvidas novamente. Cite-se o exemplo da música sacra de Bach que ficou esquecida por cerca de cem anos para somente no séc. XIX, em meio ao crescente interesse musicológico pela música do passado, ganhar outra vez importância em novas performances.

Pode-se perguntar e com “razão”, apesar do fato de uma obra ser tão imbuída de funcionalidade e estar tão pre-determinada pelas perspectivas e expectativas da causalidade, a que se deve então sua sobrevivência para além de seu tempo? Por que a obra de arte, sendo “expressão” de uma época transcende sua circunscrição no tempo? O que permite que uma obra escape, por exemplo, a sua função sacro-religiosa e entre nas salas de concerto pelo mundo afora? O que faz, afinal, com que a obra perca ou até mesmo mude seu caráter de funcional? Bem, como a coisa já está longa, isto fica para um próximo post.


[1] CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia, p. 10. São Paulo: Ática, 1994.

[2] HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências, pp. 13-4. Petrópolis: Vozes, 2001.