domingo, 30 de setembro de 2007

Música e funcionalidade II

No post anterior sobre esse assunto (13/09/07) ficaram algumas perguntas no ar. Tudo bem, sabe-se que a cultura científica predomina em todo empenho de formação educacional no ocidente e sabe-se também, e por isso mesmo, que a ciência possui um apelo quase que irresistível. Por isso, não só a educação é em geral voltada para uma formação desde os seus pressupostos, mas atividades tão abrangentes como, por exemplo, a mídia de massa, enfatizam e propagam uma concepção científica do real, incorporando-a ao cotidiano de todos.

Mas será que é só isso? Bem, se assim for, a questão se trata talvez de realizar uma mudança de paradigma, se é que isso é necessário. Pode até ser e talvez isso fosse bastante interessante: ao invés de se maquinar e elaborar as condições para a anulação da vida, tais como armas de destruição em massa (evidentemente não aquelas a que se referiu o Bush sobre o Saddam), o ser humano pudesse talvez explorar mais a fundo as condições de criação em si mesma, o que a princípio poderia, como, aliás, sempre foi em se tratando de arte, engendrar e manter a própria vida porque em primeiro lugar engendra e mantém a condição de possibilidade de ser e do sentido do real.

Não que isso não ocorra, mesmo hoje em dia, pois por mais hegemônico que o ocidente com sua paidéia se pretenda, uma vez que a realidade e suas condições de possibilidade sempre se apresentam de maneira absolutamente diversa e imprevisível. Porém, cabe questionar se a própria visão do que é música (e do que é arte) não se tornou por demais refém de uma concepção totalitária da ciência, em que pese estar muito em voga afirmar que não existem verdades absolutas. Talvez aqui se reproduza aquela velha questão de que a reflexão sobre a arte e, principalmente, sobre a música seja sempre um acontecimento tardio em relação às demais realizações do pensamento ocidental.

Por isso, retomo os questionamentos finais do último post: será que a realização musical (ou artística) pode ser circunscrita a uma funcionalidade pré-estabelecida? Será que em se tratando de música (e arte) a funcionalidade pode realmente prever e pre-determinar os modos próprios e característicos de sua realização? Para uma tentativa de responder apropriadamente, entendo que sejam necessárias duas coisas: primeiro, saber de onde provém a força e o vigor do que chamamos funcionalidade e segundo, como essa força e vigor funcional se manifestou na reflexão acerca da arte no pensamento ocidental.

Primeiro, as primeiras coisas! Podemos compreender a funcionalidade a partir da sentença que afirma que tudo tem uma função ou que nada é sem função. Nesse caso, a funcionalidade estaria pre-disposta desde uma analogia para com a razão, isto é, a partir do que Leibniz afirmara de que “nada é sem razão.” Esta afirmação sim, é que se tornou paradigmática na tradição metafísica do pensamento ocidental sob a forma do “tudo tem uma razão” ou “tudo tem um por quê.” Bem, sem querer aprofundar essa questão no momento, a realidade se nos apresenta muitas vezes de modo bem diferente. Cada um certamente encontrará em sua própria vida “n” situações e circunstâncias que fogem completamente a esse grau de previsibilidade e certeza racional. Evidentemente que contra isso poderá se argumentar que a maioria de nós, na verdade, não detém a posse do “conhecimento” necessário e suficiente para a compreensão, digamos, de “razões que a própria razão desconhece,” o que evidentemente é uma demonstração cabal do autoritarismo de um modo de encaminhamento do pensamento (não vou entrar em mais detalhes, se não a coisa vai longe...).

Por outro lado, a funcionalidade pode ser melhor compreendida desde o sistema aristotélico da causalidade. A causalidade é expressa, como diz Marilena Chauí, através da afirmação silenciosa de “que existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma outra. Acreditamos, assim, que a realidade é feita de causalidades, que as coisas, os fatos, as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e, até mesmo, controlar para o uso de nossa vida.”[1] A técnica, cujo ocidente tanto preza, sintetiza a realidade a partir da instrumentalidade causal e do seu uso antropológico, isto é, um meio para um fim orientado desde a atividade humana. Embora seja possível discutir a prevalência da eficiência sobre a finalidade,[2] a causalidade mantém sempre em tela o nexo entre ato e conseqüência. Ora, na medida em que tudo passa pelo filtro da instrumentalidade técnica super-determinada pela ciência, nada mais razoável do que considerar que a funcionalidade está presente em todos os seres e em todas as realizações do real.

Desse modo, poderia-se perfeitamente dizer que não somente “tudo possui uma razão,” como também e conseqüentemente, “tudo tem uma função.” Nesse sentido, quando se reflete sobre a arte, o tratamento dispensado às obras não difere nenhum pouco da concepção com que se compreende os entes em geral. Essa compreensão passa invariavelmente pela finalidade, pelo uso ou função que cada coisa possui, ou melhor, pela função que lhe é atribuída desde uma perspectiva em que a realidade se encontra subsumida à causalidade.

A atribuição de uma função à arte se estrutura então sobre o pilar da causalidade e por analogia, sobre a funcionalidade que os entes em geral, ao modo do instrumento, adquirem sob essa perspectiva causal. A concepção funcional da arte é levada a cabo pela Estética através da imposição modelar do par conceitual matéria e forma. Nessa concepção estética, a matéria não é nada, a não ser pela sua conformação. Esta conformação, isto é, a forma a que uma matéria é submetida confere não somente sua função, mas fundamentalmente, seu sentido.

Daí, grosseiramente falando, temos que uma missa é um modo de conformação da matéria sonora musical que ganha sentido tão somente através da função em que a obra é empregada. E de fato, historiograficamente falando, compositores do Período Barroco compunham obras quase que descartáveis, algumas quando tocadas uma vez jamais seriam ouvidas novamente. Cite-se o exemplo da música sacra de Bach que ficou esquecida por cerca de cem anos para somente no séc. XIX, em meio ao crescente interesse musicológico pela música do passado, ganhar outra vez importância em novas performances.

Pode-se perguntar e com “razão”, apesar do fato de uma obra ser tão imbuída de funcionalidade e estar tão pre-determinada pelas perspectivas e expectativas da causalidade, a que se deve então sua sobrevivência para além de seu tempo? Por que a obra de arte, sendo “expressão” de uma época transcende sua circunscrição no tempo? O que permite que uma obra escape, por exemplo, a sua função sacro-religiosa e entre nas salas de concerto pelo mundo afora? O que faz, afinal, com que a obra perca ou até mesmo mude seu caráter de funcional? Bem, como a coisa já está longa, isto fica para um próximo post.


[1] CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia, p. 10. São Paulo: Ática, 1994.

[2] HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências, pp. 13-4. Petrópolis: Vozes, 2001.

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