sábado, 15 de março de 2008

Música e interpretação II

Freqüentemente vem à tona aquela afirmação de que o intérprete deve obedecer as indicações do compositor colocadas na partitura, isto é, o intérprete deve ser fiel a intenção do compositor.

Duas perguntas importantes surgem acerca dessa relação: 1) o que é interpretação? 2) quem é o intérprete e qual é realmente o seu papel?

Tudo bem, suponha que na partitura de uma obra qualquer o seu compositor tenha indicado um crescendo a partir de um trecho em piano até outro com a indicação de forte. Supondo-se também que todos sabem o que significam piano, crescendo e forte, o que ninguém consegue afirmar categoricamente é a gradação dessas indicações. A dinâmica não é, ou pelo menos não se encontra quantificada em decibéis. Evidentemente que há uma certa experiência constituída coletivamente por parte de compositores e intérpretes, mas isso de modo nenhum se dá como garantia de uma interpretação uniforme.

O desejo da interpretação uniforme ou de modelos interpretativos é uma das conseqüências nefastas do ingresso da música na academia, embora existam outras bastante positivas. Certamente que na música eletro-acústica a parametrização da dinâmica, bem como de outros fatores da performance musical é completamente viável. Já no caso da performance humana, nem de longe a exatidão dos parâmetros é factível ou, creio, sequer desejável.

Bem, já que parece ser impossível esse grau de exatidão na performance de parâmetros simples como a dinâmica, pergunta-se, como seria possível ao intérprete ser fiel a intenção do compositor? Na medida em que a precisão se encontra comprometida pela ausência da definição exata de parâmetros, a própria questão da fidelidade ao compositor pode muito bem ser colocada em xeque. Diga-se de passagem, não há nada de mais nisso, uma vez que não se trata de nenhum insulto ou desrespeito seja à intenção do compositor, seja à sua memória.

Na verdade, o conservadorismo da atividade musical de tradição erudita, na qual a grande maioria dos músicos no Brasil foi e ainda é em muitos casos educada conduziu os intérpretes ao dilema de se situarem entre a obediência às determinações do compositor e a liberdade de sua própria atividade criativa enquanto intérpretes e executantes. Nessa tradição, o compositor, assim como o professor em relação a conteúdos das disciplinas, foi tratado como autoridade máxima de sua própria obra, uma espécie de semi-deus ou totem intocável e irrepreensível, um claro resquício do autoritarismo político e conservatorial. Em nada esse tipo de imposição tem a ver com o ato de interpretar. Ao contrário, as determinações da fidelidade ao compositor impedem o livre ato criativo, vedam a possibilidade da própria interpretação e da interpretação própria.

Por isso, cabe perguntar outra vez: o que é interpretação? Há muitas definições. A mais comum provém do verbo interpretar e quer dizer "determinar o significado preciso", seja de um texto ou de uma lei. É nesse sentido que através das mais diversas disciplinas se tentou e muitas vezes se tenta determinar o significado preciso da música e suas obras. No entanto, interpretação também pode significar "dar certo sentido a alguma coisa, entender ou ainda julgar". Bem, para isso, recebe-se muita educação, seja da teoria, do treinamento auditivo, da história, da análise ou da estética. Afinal, na cultura ocidental letrada, a capacidade de compreender e julgar advém de longo período de instrução e treino. Nesse caso, nunca sabemos se o que compreendemos e julgamos o fazemos por nossa própria conta ou se esse julgar e compreender já não são mera conseqüência dos esquemas de doutrinamento conceitual e do condicionamento comportamental do ver, do ouvir e do sentir frente à música desde os compartimentos e desde as formatações pressupostas pela ciência. Nesse caso, a compreensão e o julgamento se dariam como efeito num sistema de causalidade que remete para as mais diversas disciplinas o seu elemento desencadeador, isto é, sua causa.

Mas, então, é só isso? Será que simplesmente nos colocamos dentro ou fora dos diversos esquemas conceituais ou será que interpretação é algo mais que isso? De acordo com Domenico Turco, uma das acepções de interpretação provém de inter-pretium, com a qual concorda Pinharanda Gomes no Prefácio ao Organum de Aristóteles: "O substantivo latino interpretatio tem origem na feira, no negócio, na discussão dos preços ou do preço, pretium, face ao qual os interlocutores assumem posições diversas, de onde o interpretium". Essa é uma versão deveras estranha. Para tentar compreender melhor a relação de inter-pretium com o intérprete, especialmente o músico, peço a ajuda do Prof. Manuel Antônio de Castro. Examinemos com ele os componentes da palavra:

"O prefixo inter e o radical pretium. Inter, quando traduzido por "entre", põe em cena o diálogo, o debate em que há posições diferentes. Indica também o lugar no qual e a partir do qual acontece o diálogo, o embate. O preço é algo mutável, que se define no decorrer e como conseqüência do diálogo. É o valor que está em jogo. O diálogo em torno do jogo do valor se faz a partir do lugar no qual os dialogantes se movem. A este lugar de abertura e possibilidade do debate e embate deram os gregos o nome de ethos. A tensão e relação do "entre" como diálogo e do pretium como ethos fazem aparecer a terceira dimensão de toda interpretação: o barganhar, o especular. Todo interpretar implica, pois, o diálogo, o ethos, o especular. Especular é um verbo comum tanto à interpretação comercial como à filosófica. E isso não é de estranhar, pois a palavra interpretatio é a tradução da palavra grega hermeneia, formada do verbo hermeneuein, interpretar: "Heremeneuein, hermeneia e hermeneus não dizem como sempre se ouve, esclarecer no sentido de conduzir uma coisa estranha e obscura para o âmbito do claro e familiar da razão e do discurso".[1] A tarefa do intérprete não consiste em esclarecer o sentido da obra, que nela está oculto, mas num desvelar que implica: diálogo, ethos, especulação".[2]

As questões aqui trazidas à tona não se encontram nos manuais de interpretação da teoria musical ou do treinamento auditivo e tampouco no da história, da análise ou da estética. Por isso desconfiamos que a atividade do intérprete está muito aquém ou além de seus domínios. Assim, devo perguntar, afinal, em que consiste o diálogo do intérprete e em que sentido, ao interpretar a obra, chega ele ao estabelecimento do que aqui se nomeou por preço? Assim, retomo aqui a segunda pergunta que fiz:  quem é o intérprete e qual é realmente o seu papel? Mas isso, fica para o próximo post.


[1] Carneiro Leão, Aprendendo a pensar, vol I. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 248.

[2] Castro, Poética e poiésis. Rio de Janeiro: Manuscrito, 1998, p. 4.