domingo, 9 de setembro de 2007

Autonomia da Música

Parece ser um absurdo admitir que a música é autônoma, isto é, que possui a faculdade de se governar por si mesma ou de se reger por suas próprias leis. O que é próprio da música acontece sempre não numa autonomia, independentemente de tudo e de todos, mas numa determinada relação. Que relação é essa? É a relação com o próprio ser humano. Esta relação não se dá de qualquer maneira, mas sim numa mútua referência. Em outras palavras, a música produz sentido sim, mas enquanto se dá numa relação referencial com o homem. Essa relação não é algo que propriamente se adquira, mas se dá de modo co-extensivo ao ser humano, quer dizer, música e ser humano mutuamente se implicam. No entanto, por ser co-extensiva, isso não significa que a música seja uma representação subjetiva, seja do compositor, seja do intérprete ou do público. Na música não se dá uma alegoria de outra coisa qualquer, mas se manifesta aquilo mesmo que seu próprio discurso pronuncia em sua plenitude de sentido. Nessa pronúncia está ex-posta e dis-posta a própria relação direta para com o ser humano.

4 comentários:

Flavio Barbeitas disse...

Caro Werner,

antes de mais nada, um sincero parabéns pela iniciativa do blog. Ainda que, obviamente, nunca venha a ser um espaço para multidões, poderá se tornar um ambiente de discussão e debate qualificados. Isto já é algo raríssimo nos círculos supostamente intelectuais do momento atual.

Com esse espírito, gostaria de comentar este seu post que, me parece, complementa o anterior, do dia 6 de setembro. De fato, não posso deixar de concordar com a sua afirmação, apenas aparentemente banal, de que, ao ouvirmos música não fazemos outra coisa a não ser... ouvir música. Com essa frase enfatiza-se a presença na música (não só nela, é claro, mas sempre que se dá a especificidade do fazer artístico) de algo irredutível a uma outra instância discursiva qualquer, de algo que escapa à lógica da representação e que a subverte. Não encontraremos nunca uma "explicação" para a música em outro lugar que não nela mesma, na dinâmica que ela mesma institui.

Bem, o que acho que gera muita confusão é justamente a suposição de que essa irredutibilidade que você aponta - e que eu acompanho - seja uma reprodução, em vestes renovadas, de um pensamento estético dito "romântico" que via a arte como produto da inspiração de um espírito abstrato e, portanto, bastante dissociada das demais relações em que está implicado o homem em sociedade. Não é o caso, acima de tudo porque nessa estética a arte encontraria justificação no plano subjetivo, não raro coincidindo com o plano individual do artista. Ou seja, aqui estaria no fundo recolocada justamente a lógica da representação de que você pretendeu se afastar.

Mas a confusão maior nem é essa. É que a resposta crítica à corrente estética citada acima foi o marxismo que procurou enxergar a arte, em última análise, como manifestação dependente de relações materiais e econômicas - estas o verdadeiro motor da história (aqui estou sendo grosseiramente sintético). A proeminência absoluta dos fatores econômicos dada pelo marxismo fez água, como se sabe, foi relativizada e deixou de fazer sentido com o tempo, mas é verdade que há em curso uma reformulação dessa leitura por assim dizer sociológica da arte onde esta surge como função de novas conjunturas que o mundo contemporâneo apresenta. Assim, o que entendemos por "arte" seria produto não do homem (considerado em termos amplos e "abstratos") mas de um determinado grupo dominador (não apenas do ponto de vista econômico, mas étnico, sexual etc.). A arte, a música inclusive, passa a ser interpretada como fruto dessas relações de dominação e exclusão, sendo que caberia a uma crítica radical e contemporânea afirmar, ou melhor, dar voz a quem não teve condições de fazê-lo autonomamente justamente por ser excluído etc. Nessa linha, estaria toda a leitura cultural pós-moderna em voga nos nossos dias.

Pois bem, digo apenas que não acho que o modo como você considerou a música e a arte em seus posts seja invalidado por esse tipo de leitura por assim dizer sociológica. São planos absolutamente distintos de consideração da arte. Por mais que se queira entender a arte como reflexo de estruturas sociais - ou no caso pós-moderno como instrumento de libertação de minorias - o fato é que ela continuará falando ao seu modo e apenas ao seu modo. O perigo está em não termos mais ouvidos para acolher a sua mensagem.

Já me alonguei demais, mas espero ter conseguido um mínimo de clareza. Continuemos a conversa.
Grande abraço,
Flavio Barbeitas.

Rainer Sousa disse...

Como se daria a explicação da música por ela mesma? Essa é uma questão que muito me interessa.

Intuitivamente, creio que "querer explicar a música por si" exige o conhecimento prévio de um sistema singular tão complexo quanto a linguagem.

Restringindo-se ao reconhecimento dos códigos da música ocidental, essa questão passa por implicações diversas.

É interssante percber que, por exemplo, Adorno tinha conhecimento dos códigos da música ocidental e ainda assim defendeu uma leitura dessa ação artística por um viés sociológico.

No entanto, para isso ele justificou sua perspectiva problematizando as possibilidades criativas da música erudita em contraponto à canção popular.

Dessa forma, teria ele escamoteado a percepção da música enquanto uma via de expressão aoutônoma para validar suas perspectivas?

Flavio Barbeitas disse...

Caro Rainer,

as palavras nem sempre são nossas amigas. No caso dessa discussão, o termo "explicar" (que usei entre aspas justamente por prever a sua inadequação) acabou dando margem a confusões. Não é propriamente correto dizer que a explicação da música está nela mesma. Ex-plicar significa desembaraçar, tirar as dobras, colocar tudo em simplicidade, isto é sine plex, sem dobras. Nesse sentido não é que encontramos "explicações" para a música nela mesma. Não as encontramos nem nela nem em lugar algum, pois ao tirarmos da música as suas dobras o que resta já não é mais música. Isto pode parecer - e é - angustiante justamente porque, como de certo modo falou o Werner, lidamos com o conhecimento sempre a partir de mediações, raciocinando com elas, nunca num contato direto com a coisa. Pense bem e veja se não é assim que procedemos. À pergunta "o que é tal coisa", damos como resposta uma frase que supostamente profere a verdade sobre tal coisa. A verdade da coisa, então, tranfere-se da coisa mesma para a frase que a "traduz", isto é que a re-presenta. Entenda que criticar este modo de conhecer não significa jogá-lo fora, desprezá-lo, declará-lo ineficaz. Significa apenas uma tentativa de compreendê-lo e de dimensioná-lo. Lembre-se, porém, que este não é o único modo possível de relacionamento com as coisas, os fenômenos, as manifestações; muito embora seja o modo absolutamente dominante - e cada vez mais excludente - de conhecimento no Ocidente (e com a ocidentalização do mundo, em todo o planeta).
De toda maneira, aceitar a substantividade da música ou a sua irredutibilidade a outros discursos, não significa que não devemos proferir palavra alguma sobre a música. Aliás, isto seria impossível. É claro que a música, sendo um dado cultural, participará da vida do homem(portanto em todos os sentidos: social, político, econômico...) como um outro dado cultural qualquer. Logo sofrerá condicionamentos e acarretará influências dentro da rede de relações em que se insere. A questão toda - e por isso falei que são planos distintos de consideração do fenômeno - é que haverá sempre uma dimensão de sentido próprio da música que é apenas... musical. Esse sentido fala ao homem de um modo peculiar e sempre resistente à lógica da representação que rege o conhecimento de tipo ocidental.

Diga aí se esclareci alguma coisa... ou se só fiz piorar tudo.
Grande abraço.

Rainer Sousa disse...

Ficou mais claro.... :)

Obrigado por ler meu comentário !