terça-feira, 6 de novembro de 2007

Música e funcionalidade III

Bem, já se vai um longo período desde o úlltimo post. Gostaria de retomar um assunto que ficou meio que suspenso. No post do dia 30/09/2007, algumas questões foram colocadas sob a forma de perguntas. Apenas para recapitular, são elas: pode-se perguntar e com “razão”, apesar do fato de uma obra ser tão imbuída de funcionalidade e estar tão pre-determinada pelas perspectivas e expectativas da causalidade, a que se deve então sua sobrevivência para além de seu tempo? Por que a obra de arte, sendo “expressão” de uma época transcende sua circunscrição no tempo? O que permite que uma obra escape, por exemplo, a sua função sacro-religiosa e entre nas salas de concerto pelo mundo afora? O que faz, afinal, com que a obra perca ou até mesmo mude seu caráter de funcional?

Podemos dizer que a obra jamais sobreviveria à coisa alguma se ela fosse tão somente “expressão” de uma época. Certamente que a obra pode expressar isso ou aquilo, mas, convenhamos, isso de modo algum é exclusividade sua. A Paixão segundo São Mateus de Bach não sobreviveu pelo empenho de Mendelssohn, mesmo que reconheçamos como dele os merecidos créditos pelo resgate da obra de Bach.

Também não é a função sacra da Paixão que nela se possa reconhecer que garante sua sobrevivência a sua época, principalmente em face da situação deplorável da música sacra nas igrejas da atualidade, generalisticamente falando. É preciso reconhecer que além do mero interesse historiográfico de preservação de acervo documental, é a obra, antes de tudo, que se manifesta digna de resgate, é ela que instaura o seu próprio tempo e se institui co-partícipe da mesma temporalidade que a nossa, isto é, de nossa com-temporaneidade. A obra inaugura a cada vez o seu próprio tempo e por isso ela sobrevive, quando é realmente obra, a sua época.

Igreja de São Tomás (Thomaskirche),
em Leipzig, onde Bach trabalhou.

Aquele mundo epocal de Bach ruiu, não existe mais, nem volta mais, por mais que nos esforcemos em nossos empenhos hitoriográficos. Não se pode considerar sua música como o restou de sua época sob pena de a tratarmos como mero escombro. Mas ao contrário, a obra mesmo orfã de seu tempo, abre constantemente novas e originais relações de sentido com o contemporâneo. Isso se chama atualidade da obra de arte. A obra é atual porque nunca é simplesmente peça de museu (no sentido pejorativo). Ela é atual na medida em que nela se desencadeia a dinâmica de desvelamento de sempre novas possibilidades de sentido e, por isso mesmo, de interpretação e compreensão. Por isso a obra nunca é substancial, mas sim, primordialmente processual. Obra é acontecimento. De quê? Do desvelamento. De quê? Do sentido que ela mesma põe em obra e que a cada vez se relaciona com o ser humano numa interpretação compreensiva, isto é, numa interpretação que compreende.

E a funcionalidade? Bem, esta, em relação à obra, é sempre secundária e contingencial, nunca condição sine qua non da obra ser e realizar-se. A obra jamais se consome numa serventia, tal como o metal no martelo ou o silício no chip de um computador. Por isso, precisamos aprender a pensar as obras e a arte sem os filtros da instrumentalidade. Precisamos aprender a pensá-las desde o que elas mesmas são, como são e não simples e convenientemente, porque fácil, forçá-las numa estrutura funcional cuja proveniência se encontra demasiadamente afastada do que obra e arte são.

A funcionalidade serve muito bem para tratar dos mais diversos utensílios em sua serventia, mas não se sustenta como aquilo que se constitui a origem da obra e da arte. Por isso é que toda vez que pensamos o que é digno de ser pensado nas obras e na arte esquecemos da função, pois, toda e a cada vez, são as obras e a arte que por elas mesmas nos convocam a pensar. Pensar a arte e suas obras é antes de tudo deixar ser por elas convocado e nisso aceitar o convite para a livre festa do pensamento, para além da aridez operacional dos conceitos.

Em que se constitui a origem da obra de arte? Bem, isso fica para depois.

Um comentário:

Anônimo disse...
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